Creatus est homo ad hunc finem,
ut Dominum Deum suum laudet,
revereatur, eique serviens tandem salvus fiat.

(O homem foi criado para este fim:
louvar, reverenciar, servir ao Senhor seu Deus,
e assim salvar a sua alma. Exercícios, Sto. Inácio, vol.I)

terça-feira, 16 de março de 2010

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE O PAPA BENTO XVI PARA A QUARESMA DE 2010

A justiça de Deus está manifestada
mediante a fé em Jesus Cristo
(cfr Rom 3, 21–22 )

Queridos irmãos e irmãs,

todos os anos, por ocasião da Quaresma, a Igreja convida-nos a uma revisão sincera da nossa vida á luz dos ensinamentos evangélicos . Este ano desejaria propor-vos algumas reflexões sobre o tema vasto da justiça, partindo da afirmação Paulina: A justiça de Deus está manifestada mediante a fé em Jesus Cristo (cfr Rom 3,21 – 22 ).

Justiça: “dare cuique suum”

Detenho-me em primeiro lugar sobre o significado da palavra “justiça” que na linguagem comum implica “dar a cada um o que é seu – dare cuique suum”, segundo a conhecida expressão de Ulpiano, jurista romana do século III. Porém, na realidade, tal definição clássica não precisa em que é que consiste aquele “suo” que se deve assegurar a cada um. Aquilo de que o homem mais precisa não lhe pode ser garantido por lei. Para gozar de uma existência em plenitude, precisa de algo mais intimo que lhe pode ser concedido somente gratuitamente: poderíamos dizer que o homem vive daquele amor que só Deus lhe pode comunicar, tendo-o criado á sua imagem e semelhança. São certamente úteis e necessários os bens materiais – no fim de contas o próprio Jesus se preocupou com a cura dos doentes, em matar a fome das multidões que o seguiam e certamente condena a indiferença que também hoje condena centenas de milhões de seres humanos á morte por falta de alimentos, de água e de medicamentos - , mas a justiça distributiva não restitui ao ser humano todo o “suo” que lhe é devido. Como e mais do que o pão ele de facto precisa de Deus. Nora Santo Agostinho: se “ a justiça é a virtude que distribui a cada um o que é seu…não é justiça do homem aquela que subtrai o homem ao verdadeiro Deus” (De civitate Dei, XIX, 21).

De onde vem a injustiça?

O evangelista Marcos refere as seguintes palavras de Jesus, que se inserem no debate de então acerca do que é puro e impuro: “Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro. Porque é do interior do coração dos homens, que saem os maus pensamentos” (Mc 7,14-15.20-21). Para além da questão imediata relativo ao alimento, podemos entrever nas reacções dos fariseus uma tentação permanente do homem: individuar a origem do mal numa causa exterior. Muitas das ideologias modernas, a bem ver, têm este pressuposto: visto que a injustiça vem “de fora”, para que reine a justiça é suficiente remover as causas externas que impedem a sua actuação: Esta maneira de pensar - admoesta Jesus – é ingénua e míope. A injustiça, fruto do mal , não tem raízes exclusivamente externas; tem origem no coração do homem, onde se encontram os germes de uma misteriosa conivência com o mal. Reconhece-o com amargura o Salmista:”Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-se no pecado” (Sl. 51,7). Sim, o homem torna-se frágil por um impulso profundo, que o mortifica na capacidade de entrar em comunhão com o outro. Aberto por natureza ao fluxo livre da partilha, adverte dentro de si uma força de gravidade estranha que o leva a dobrar-se sobre si mesmo, a afirmar-se acima e contra os outros: é o egoísmo, consequência do pecado original. Adão e Eva, seduzidos pela mentira de Satanás, pegando no fruto misterioso contra a vontade divina, substituíram á lógica de confiar no Amor aquela da suspeita e da competição ; á lógica do receber, da espera confiante do Outro, aquela ansiosa do agarrar, do fazer sozinho (cfr Gn 3,1-6) experimentando como resultado uma sensação de inquietação e de incerteza. Como pode o homem libertar-se deste impulso egoísta e abrir-se ao amor?

Justiça e Sedaqah

No coração da sabedoria de Israel encontramos um laço profundo entre fé em Deus que “levanta do pó o indigente (Sl 113,7) e justiça em relação ao próximo. A própria palavra com a qual em hebraico se indica a virtude da justiça, sedaqah, exprime-o bem. De facto sedaqah significa, dum lado a aceitação plena da vontade do Deus de Israel; do outro, equidade em relação ao próximo (cfr Ex 29,12-17), de maneira especial ao pobre, ao estrangeiro, ao órfão e á viúva ( cfr Dt 10,18-19). Mas os dois significados estão ligados, porque o dar ao pobre, para o israelita nada mais é senão a retribuição que se deve a Deus, que teve piedade da miséria do seu povo. Não é por acaso que o dom das tábuas da Lei a Moisés, no monte Sinai, se verifica depois da passagem do Mar Vermelho. Isto é, a escuta da Lei , pressupõe a fé no Deus que foi o primeiro a ouvir o lamento do seu povo e desceu para o libertar do poder do Egipto (cfr Ex s,8). Deus está atento ao grito do pobre e em resposta pede para ser ouvido: pede justiça para o pobre ( cfr.Ecli 4,4-5.8-9), o estrangeiro ( cfr Ex 22,20), o escravo ( cfr Dt 15,12-18). Para entrar na justiça é portanto necessário sair daquela ilusão de auto – suficiência , daquele estado profundo de fecho, que á a própria origem da injustiça. Por outras palavras, é necessário um “êxodo” mais profundo do que aquele que Deus efectuou com Moisés, uma libertação do coração, que a palavra da Lei, sozinha, é impotente a realizar. Existe portanto para o homem esperança de justiça?

Cristo, justiça de Deus

O anuncio cristão responde positivamente á sede de justiça do homem, como afirma o apóstolo Paulo na Carta aos Romanos: “ Mas agora, é sem a lei que está manifestada a justiça de Deus… mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os crentes. De facto não há distinção, porque todos pecaram e estão privados da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente pela Sua graça, por meio da redenção que se realiza em Jesus Cristo, que Deus apresentou como vitima de propiciação pelo Seu próprio sangue, mediante a fé” (3,21-25)

Qual é portanto a justiça de Cristo? É antes de mais a justiça que vem da graça, onde não é o homem que repara, que cura si mesmo e os outros. O facto de que a “expiação” se verifique no “sangue” de Jesus significa que não são os sacrifícios do homem a libertá-lo do peso das suas culpas, mas o gesto do amor de Deus que se abre até ao extremo, até fazer passar em si “ a maldição” que toca ao homem, para lhe transmitir em troca a “bênção” que toca a Deus (cfr Gal 3,13-14). Mas isto levanta imediatamente uma objecção: que justiça existe lá onde o justo morre pelo culpado e o culpado recebe em troca a bênção que toca ao justo? Desta maneira cada um não recebe o contrário do que é “seu”? Na realidade, aqui manifesta-se a justiça divina, profundamente diferente da justiça humana. Deus pagou por nós no seu Filho o preço do resgate, um preço verdadeiramente exorbitante. Perante a justiça da Cruz o homem pode revoltar-se, porque ele põe em evidencia que o homem não é um ser autárquico , mas precisa de um Outro para ser plenamente si mesmo. Converter-se a Cristo, acreditar no Evangelho, no fundo significa precisamente isto: sair da ilusão da auto suficiência para descobrir e aceitar a própria indigência – indigência dos outros e de Deus, exigência do seu perdão e da sua amizade.

Compreende-se então como a fé não é um facto natural, cómodo, obvio: é necessário humildade para aceitar que se precisa que um Outro me liberte do “meu”, para me dar gratuitamente o “seu”. Isto acontece particularmente nos sacramentos da Penitencia e da Eucaristia. Graças á acção de Cristo, nós podemos entrar na justiça “ maior”, que é aquela do amor ( cfr Rom 13,8-10), a justiça de quem se sente em todo o caso sempre mais devedor do que credor, porque recebeu mais do que aquilo que poderia esperar.

Precisamente fortalecido por esta experiencia, o cristão é levado a contribuir para a formação de sociedades justas, onde todos recebem o necessário para viver segundo a própria dignidade de homem e onde a justiça é vivificada pelo amor.

Queridos irmãos e irmãs, a Quaresma culmina no Tríduo Pascal, no qual também este ano celebraremos a justiça divina, que é plenitude de caridade, de dom, de salvação. Que este tempo penitencial seja para cada cristão tempo de autentica conversão e de conhecimento intenso do mistério de Cristo, que veio para realizar a justiça. Com estes sentimentos, a todos concedo de coração, a Bênção Apostólica.

Vaticano, 30 de Outubro de 2009

BENEDICTUS PP. XVI

© Copyright 2009 - Libreria Editrice Vaticana

O meu testemunho é verdadeiro...



Era o ano de 1997. Era Inverno. Não me recordo o dia mas sei que era Sábado, porque era aos sábados que fazíamos a limpeza e outros trabalhos. Ameaçava chover. Nesse dia deram-me uma ordem. O padre director, um homem desprezível em todos os sentidos, dera-me a seguinte ordem: «queima todos os livros». Eu pensava que eram livros de ponto ou livros escolares que já não serviam mas, quando cheguei a um descampado junto ao campo de futebol deparei-me com este cenário: colegas meus descarregavam carrinhos de mão cheios de breviários antigos.

A ordem era eu queimá-los a todos. Senti-me triste… eram dezenas, cerca de uma centena e meia. Comecei a rasgá-los e ao mesmo tempo a conhecê-los… As capas eram em couro trabalhado e as folhas com tons ora encarnados ora dourados. Alguns, já meio destruídos pelo desprezo a que foram voltados desde a reforma litúrgica dos anos 70 e 80. Meios podres devido à humidade, meios comidos, porém, alguns ainda em bom estado. “Queima tudo”, assim ecoava a voz do padre. Conforme ia rasgando e queimando deparei-me com as imagens desses livros: Cristo crucificado, Nossa Senhora…

Passados uns minutos veio um colega ajudar-me. Então começamos a poupar as páginas com as imagens. Mas o que fazer a tantas? Lá tivemos que queimá-las também. Felizmente ainda guardei uma, uma imagem de Cristo crucificado que infelizmente perdi. (As imagens que eu mais gosto são a do Sagrado Coração de Jesus e Jesus Crucificado.) Começou a chuviscar e fomo-nos embora. Ali estiveram meios a arder e a apanhar a chuva. Ao outro dia ouvi um dos maiores raspanetes da minha vida: «Não te disse que era prós queimar a todos»? O padre parecia endemoninhado porque muitos livros, como é óbvio, não arderam. Felizmente não lhe deu para me bater, como já o tinha feito várias vezes. E assim fui feito executor do inquisidor da Igreja. Queimei os livros do Índex Católico… Hoje arrependo-me de o ter feito e de não ter ficado com alguns…

Passados uns tempos fui destacado para ajudar um sacerdote a organizar os arquivos do seminário. À hora marcada tinha de estar junto da biblioteca “proibida”. Eu chamava-lhe proibida porque não podíamos entrar lá. Mas um dia levaram-nos lá. Havia livros muito antigos mas não nos deixaram tocar ou aproximar deles.

À hora marcada tinha de entrar por um corredor, subir as escadas até ao último andar e esperar lá pelo sacerdote. Acontece que um dia fui mais cedo. Sentei-me no último degrau à espera dele e vi um armário meio aberto. Fui lá, abri a porta e puxei uma gaveta do interior do móvel. Estava lá um dos paramentos mais bonitos que já vira. Era vermelho!... Só o vi a ser usado uma vez. Nunca mais me foi permitido aceder a esse espaço até porque a minha função já tinha terminado. O meu trabalho nos arquivos consistia em ajudar o sacerdote idoso a carregar os livros de ponto e a organizá-los numa estante. Deparei-me com inúmeras fotografias em que se via o clero com batina e cabeção assim como era o dia-a-dia do seminário naquele tempo.

Desde então comecei a perceber que tinha existido uma outra Igreja. Uma Igreja completamente diferente daquela que existe hoje. Dei-me conta porque fui descobrindo-a por estas pequeninas coisas e comecei a juntar 1+2. Naquele tempo não imaginava o que era o Rito Tridantino, só sabia que antigamente se rezava a Missa em Latim e pensava que a Missa de “hoje” (ou novus ritus), era igual à Missa de ontem excepto na língua. Que os padres usavam a batina. Não sabia o que era a sobrepeliz ou o tricórnio e muito menos o que era a alva antiga ou o amito. Não percebia porque razão havia altares colados às paredes e outro no meio da capela-mor, não sabia para que servia aquelas duas casinhas no fundo da capela, mais tarde fiquei a saber que eram confessionários e para que serviam. Não sabia porque razão, na porta sacristia que dava para a capela havia uma pia de água benta e tantas outras coisas.

Com o passar dos tempos comecei a descobrir muita coisa, sobretudo quando comecei a dar catequese e a fazer a minha própria investigação. Mas é com certo orgulho que digo que o que eu sei hoje, sobretudo na área da liturgia, fui adquirido fora do seminário e na minha relação de amizade com o meu antigo pároco que me falava do seu tempo de seminarista e de jovem padre e das velhas recordações que guarda desse tempo como os breviários em latim, dos livros, a Suma Teológica em latim, os cadernos, as fotografias e tantas outras coisas algumas que me deu como os Sermões de Sto. António em latim.

Nunca fui a uma Missa Tridentina... Espero um dia ter essa graça de Deus... Quem sabe, presidi-la pois nunca deixei de sentir o chamado de Deus. Gostava de ser Sacerdote, mas não do mesmo modo que muitos são nesta Igreja nascida do C. V. II

Saí do seminário em 1997.